HÁ MAIS DE UMA DÉCADA estudo gênero e sexualidade. Já li de tudo e ouvi de tudo também a respeito de sexualidade e gênero. NO ENTANTO, jamais ouvi de uma pessoa simples aberrações tão grandes quanto já ouvi de AUTORIDADES INTELECTUAIS. Os intelectuais acusam o SENSO-COMUM de sua mística, mas não enxerga um PALMO A FRENTE DE SEUS NARIZES ACADÊMICOS o quanto estão no mesmo nível. Quem conseguiu sobreviver à selva acadêmica sabe a respeito da FORMAÇÃO DE ESCOLAS DE PENSAMENTO, da construção de enormes catedrais políticas. É AÍ ONDE MORAM TODOS OS PERIGOS. Em toda a minha vida acadêmica desde a graduação até as pós-graduações que fiz não vi, ouvi ou li um só dos meus camaradas desejando SUPERAR os seus mestres ou mesmo DESEJANDO PERDÊ-LOS. Vi catedrais imensas sendo erguidas, altares sendo levantados, verdadeiros cultos científicos sendo realizados e ouvi mil preces sendo lançadas ao vento. A DEFESA DE UM PONTO DE VISTA, DE UMA ESCOLA DE PENSAMENTO já não é um princípio sintomático que deveríamos, em tese, observar com raríssimo cuidado? Abaixo um texto sobre LIBERAÇÃO SEXUAL do psicanalista e doutor em psicologia Contardo Calligaris. Boa leitura!!!!
A liberação sexual
Uma menina de 12 anos grava um vídeo em que ela se penetra com um boneco
e o manda para um correspondente on-line. A mãe da menina descobre o
vídeo e seu destino; ela agradece a Deus, porque a menina não mostrou
seu rosto. Logo, ela fica triste, pensando que a vida sexual da filha
deveria ter começado de outra forma, numa relação terna, com alguém de
verdade.
A história me fez pensar numa adolescente psicótica que encontrei
durante meu primeiro dia de trabalho numa instituição do norte da
França, na qual fui psicanalista nos anos 70. Ela se masturbava com uma
lixa, sentada na poça de seu sangue, no meio de um ateliê de marcenaria;
enquanto isso, os "terapeutas" fabricavam móveis para suas residências.
Durante dois anos, me encontrei com essa menina, a cada terça-feira de
manhã —ela me ensinou que, na origem do desejo sexual, talvez esteja um
imperativo raivoso e que nada tem a ver com amor e relações, algo como:
goza, e doa a quem doer!
Naquela época, eu escutava meninos pré-adolescentes: muitos relatos de
suas primeiras ejaculações eram cenas imaginárias de torturas e abusos
sofridos. Quase sempre, essas cenas tentavam dar um sentido erótico ao
exercício do poder absoluto e rigoroso dos pais.
Alguns desses jovens, no inverno, começaram sua vida sexual imaginando
que eram forçados a praticar coitos dolorosos com as barras escaldantes
do radiador do banheiro. Você acha exótico? Tudo bem, no Brasil não há
radiadores, mas há piscinas; não são raros (e, às vezes, tem
consequências apavorantes) os "incidentes" em que um menino fica com o
membro preso pela sucção de um tubo de circulação da água. Você acha que
são frutos do acaso?
Mais tarde, em Paris, animei um grupo (inspirado nos grupos Balint) de
residentes plantonistas. Alguns se angustiavam ao encontrar incidentes
sexuais inesperados —objetos introduzidos por algum orifício, mas que
explodiam e feriam (lâmpadas, por exemplo) ou que eram perdidos dentro
do corpo. Um desses jovens médicos disse que ele teria preferido receber
um dia, como plantonista, um casal vítima do mítico "penis captivus",
ou seja, de uma mistura de inchaço vascular com contração muscular, pela
qual um casal não conseguiria se separar depois do sexo. Eu comentei
que todos sonhamos com casais que se amam tanto que nem conseguem
desgrudar, mas o sexo é outra coisa.
Por que conto essas histórias, que talvez causem um certo desconforto?
Em matéria de liberdade e liberação sexuais, a questão não é ser a favor
ou ser contra; a verdadeira oposição pertinente é entre estes dois
lados:
1) Há os que acham que nossa sexualidade se desenvolveria
harmoniosamente, se ela não fosse reprimida. Para esse grupo, é a
repressão que obriga nosso desejo a procurar caminhos tortos. Jamais uma
menina "brincaria" com um boneco, se ela fosse autorizada a transar com
seus amiguinhos à vontade;
2) Há os que acham, ao contrário, que nossa sexualidade se aproxima do
que chamamos de "normal" só pela força da repressão. Para eles, o desejo
é (não está, mas "é") torto, e só sendo reprimido ele se encaminha,
eventualmente, para algum semblante de harmonia. Ou seja, sem repressão,
fantasias com bonecos, lixas e tubos de piscina talvez nos
interessassem mais do que brincadeiras com parceiros e parceiras.
Não se apresse em tomar partido. Até porque, entre os dois extremos, há
muitas posições intermediárias. Mais duas recomendações e uma nota.
1) Se você defende e deseja a "liberação sexual", ótimo, estou com você.
Mas cuidado com o que você deseja: nem sempre a gente aguenta.
2) Por favor, não demonizemos meninas que brincam com um boneco; sua sexualidade não é tão diferente da nossa.
Nota. A contracultura, desde os anos 50/60, é considerada responsável
pela "liberação sexual". De fato, nas suas margens, abundavam os
farsantes: os mais frustrados achavam que, enfim, iam poder "pegar uma
mina", os menos sinistros tinham sonhos (quase bobos) de sexo festivo,
liberado, cheio de amor e flores no cabelo.
Mas a liberação sexual da contracultura não foi nada disso: era claro,
para os melhores, que o sexo, se fosse "liberado", seria brutal,
exigente e cruento, como o desejo daquela menina louca sentada na poça
de seu sangue. A maioria dos melhores tentaram viver à altura desse
desejo "liberado"; muitos morreram na epidemia de Aids dos anos 80.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO
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