Uma noite para Morfeu
Vagamente. O som vem chegando de fora, insinua-se na janela ao bater das cortinas. Um leve suspiro arfado no peito, uma leve brisa lambendo seus pés. Levanta-se rápido e fecha a janela, cerra a cortina, apaga a luz e lhe aparece Morfeu. Dois lindos olhos mariscados, límpidos parafusos roscados, duas jabuticabinhas dengosas suspensas no tórax, nu o coração do dragão.
- Ave César!
E correm santos e correm anjos e correm-que-correm. No aparato, lá embaixo, no porão, só os gritos, os gritos não, os regozijos, os gozos escapando do coração, de almas, de nebulosas brancas, cinzas, escuras, vermelhas, amarelas, cantadas, irritadas, amores de um sargentão da PM que passa os dias e as noites e as tardes e os meses e os anos reparando tudo da sua janela.
E tão logo que Morfeu se desfaz, o velho sargentão cai no pranto, na dor, no odor de quem já não suporta mais a vida, a vida, a vida vazada, furada, bichada.
- Que vida!? – suspira deitado no chão.
E ainda Morfeu lhe acena da janela, da janela da birosca e entra para dançar no outro salão a embriagar de desejo e sonho as gimnospermas da cidade baixa.
(João Cândido Tessar in: Contos da Cidade Baixa)