quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Escola e Conhecimento

Quem é que duvida que a escola (pública e em algum grau as escolas privadas) enquanto instituição ainda serve para alguma coisa? Covil de marginais, ponto, lugar de todo tipo de discriminação e dominação, exercício franco do poder sádico de alguns diretores e professores, palco idiota de um saber antigo, ultrapassado, bem pouco libertador, QG da moralismo. Tecnologicamente, ultrapassada. Não falo de uma tecnologia midiática, funcional, em que professores e alunos falam uma linguagem informatizada. Não, isto não. Falo de uma tecnologia epistemológica, de uma tecnologia intelectual instigadora, revolucionária, que ao nivelar todos por baixo - fim do produtos racionais - facilite e afirme o convívio social e a afirmação da vida. A escola atual, moderna é decadente, justamente, porque estimula um competicismo tosco, imbecil, ultrajante, impotencializador. Brinca com os jovens, explora-os, faz-lhes de gato e sapato. Estimula a produção de conhecimento que se afirma através das crenças e crendices - Que aluno do ensino médio ou fundamental já viu uma célula ao microscópio? -. Fala-se em inclusão na escola, mas como incluir os ambíguos, os diferentes, os sem-nomes em um lugar marcado por definições (conceitos), o anfiteatro de todo este saber (a ciência)? A escola reflete não apenas o campo social, mas também o campo científico-intelectual das taxonomias. É preciso classificar, valorizar, ordenar, por fim, assegurar o estatuto do normal na escola. A escola não consegue fazer o seu dever de casa, porque os professores, diretores, toda sorte de funcionários não são técnicos preparados para tanto - é um crime contra o indivíduo as escolas que aí estão -. Geralmente, as escolas são dirigidas por gente imbecil, sem o menor preparo intelectual, um passa-fome do saber, um desgostoso da vida, um manipulador de status, um parvo que se delícia no comando de alguma diretoria, por menor que seja. Quantas travetis ocupam em escolas privadas, a exemplo, cargos de professora? Quantos gays afeminados, emasculados conseguem emprego como professores por mais competentes e por mais eficiência que demonstrem? Quantas lésbicas machudas são professoras em escolas e quantos indivíduos que não aceitam classificação sexual, de gênero, estão atuando em nossas escolas? Que é a nossa escola senão o reprodutivismo às vezes velado, geralmente, na cara de nossos preconceitos teórico-científicos, moral-religiosos? A busca do conhecimento passa, na escola, pelo crivo do moralismo e do político em que moralismo significa identificar e ultrajar o diferente e o político significa marcar posição na esfera das disputas lançando mãos de todo tipo de expediente para manter a distância destes diferentes no ambiente da normalidade escolar. A escola ainda fragiliza as meninas e imbeciliza os rapazes. Faz do conhecimento uma religião e das aulas um culto. Precisamos explodir a escola que aí estar. Não falo mais em reformas, pois não há o que reformar uma estrutura pobre e podre. É preciso uma escola circular, uma escola que se movimente, em que professores e alunos não estejam encerrados nesta antiga estrutura de poder e dominação entre as partes. É preciso mesmo nivelar por baixo todos na escola e deixar aparecer mais as discussões do acaso do que os programas idiotizantes das estratégias de curso e de aula tão caro aos pedagogos de antanho.

PIABA


Piaba é um negrinho sestroso. Gaba-se pela cidade baixa de ser pauzudo. Mimosa Gardenal diz que é tudo mentira.

- Este aí não me mete o menor medo!

À noite, quando aparecem os leões-marinhos, os lobos e as jaguatiricas, esta assembléia das moneras, vem também juntar-se Piaba, doudo negrinho enviesado, de corpo quente, de sangue tinindo na jugular.

- Quero quenga especial.

O riso bruxuleante de Monique acende fácil na cara acizentada do negrinho. Os desejos da paixão. Fingisse ser o imperador Heliogabalo deixava correr-se como o reizinho que desejava possuído, ponderava ao canto da mesa Monique. 

- Mais gostosinho que Jerônimo, ah, é sim... Dá até viradeira nas tripas e tremedeira no coração. Se me quisesse, virava freira pra ser só dele.

Lá do seu canto o negrinho espia Monique que lhe espia também. Duas borboletinhas da noite. Dois moscões que reviram a carnificina da baixada e espalham o cheiro pútrido da depravação.

- Não é assim não siá dona. Pouca puta! - ouve-se apenas um reclamar de voz masculina.

Fosso úmido das gazelas, eis, pois. Ao fundo do Rancho surge Simone Pé de Anjo. Gargalhadas tristes, um palavrão se destaca:

- Caralho... Caralho para todo mundo! - gargalhadas.

Madrugada já do 2 de novembro. Nas janelas de algumas casas da baixa beijam flores os beija-flores, os colibris; as açucenas e camélias, os pirilampos ainda esvoaçam iluminando pontos aqui e ali. Na sacada de um casarão muito antigo sob a luz de um poste muito alto vê-se Monique e Piaba no afago acasalador e tenebroso das mariposas.


(João Cândido Tessar in: Contos da Cidade Baixa)